por CYRO SAADEH
Vou tratar da clonagem no mundo público, mas não irei falar de tentativa de burla a concurso público, não. Hummm! Pensando bem, até que se encaixaria nessa inconstitucionalidade, sabia?
A clonagem de servidores públicos parece que pode virar realidade. Você não acredita? Pergunte a qualquer funcionário público se ele não está trabalhando mais do que trabalhava. Sim, está. Isso você mesmo pode constatar. Ah, não vale dizer que ele não trabalhava nada, não, que só botava o paletó na cadeira e saia o dia inteiro. Isso até podia ser verdade para uma classe ou outra dentro do universo do funcionalismo público, mas nunca foi a regra. Vá aos hospitais públicos para ver como os médicos, enfermeiros e atendentes trabalham. Vá às delegacias para ver o quanto há de serviço para os policiais. Saia na rua e veja se os policiais militares não têm o que fazer. Vá a um fórum e veja o tanto de audiência e a quantidade de gente que está lá todo santo dia, faça chuva ou faça sol. Serviço pra essa gente intitulada funcionário público não falta.
E é justamente no fórum que a nossa história irá ter vez.
A história é parcialmente real e relativamente fruto de um pesadelo, e só teve nome do personagem e local alterados para que não houvesse identificação, está bem? Estamos tratando de um certo tipo de “sigilo da fonte”.
Fernando é um defensor concursado, daqueles que ainda acreditam em causa pública, mesmo nos tempos do neoliberalismo, do centrismo político e do quase desaparecimento do idealismo. Pode ser considerado um herói dos tempos hodiernos.
Ah, que bonita a palavra “hodierna”. Fala a verdade, assim, até parece que o está redigindo uma petição a um juiz. Hodierno nada mais significa que atual. Simples, não?
Lá estava ele naquele fórum imenso, com dezenas e dezenas de salas de audiência, muitos juízes, muitos processos, muitas audiências e ele lá, sozinho, para fazer as defesas. Que sufoco!
Ele chegava cedo e alegre, como sempre, naquele fórum bonito e majestoso, mas logo mudava de humor e quedava-se suado. Sim, quedar vem de queda. Ele, literalmente caia de cansaço. Afinal, descer e subir escadas correndo, várias e repetidas vezes para fazer audiências é coisa mais para atleta que para causídico. Ah, outro termo que faço questão de traduzir. Causídico é aquele que defende causas, ou seja, advogado.
Isso está parecendo mais um dicionário de homônimos que uma crônica, para ser sincero, mas vamos continuar a história com bases científicas. Será? Está mais para bases reais, fáticas.
Mesmo suado, com a camisa encharcada, a gravata invertida, com a língua de fora e descabelado, sem parecer nem de longe um lorde inglês, Fernando, o doutor, conseguia fazer o seu serviço.
Num desses dias, uma juíza, brincando, lhe disse: “Doutor, porque o senhor não se multiplica? Aí ficaria mais fácil para o Estado”. E essa frase, bem humorada, não saia de sua cabeça, até que uma noite...
O doutor Fernando chega ao fórum, aliás, doutores Fernandos. Eram 30, todos idênticos, como se fossem gêmeos, com os mesmos trejeitos, a mesma voz, o mesmo jeito de andar e o mesmo conhecimento jurídico. Cada um vai para uma Vara, local em que se realizam as audiências, e todos voltam secos, com a camisa em ordem, gravata certa, com a língua dentro da boca, que permanecia fechada, cabelinho estilo mauricinho e parecendo até lordes ingleses.
No início do mês vinha o contra-cheque com o adicional de clonagem. Cada servidor público ganharia um adicional de 30% por clonagem que ele mesmo realizasse. E ele não teve dúvidas e fez logo 30, o que daria um total de 900%. E não venha com a história de que a clonagem resultaria em um bebê. Não, estranhamente, esse tipo de clonagem, bem futurista, já permitia surgir um sujeito da mesma idade e tamanho do clonado.
E você pensa que o administrador reclamava? Não. Ele até gostava. Ao invés de pagar 30 defensores, ele pagava um, que seria bem remunerado e evitava até a realização de concurso público. E esse funcionário não precisava reclamar dos serviços, pois os 30 dariam conta e não seria necessária a realização de concurso público. Coitados daqueles que estavam fora e queriam prestar provas. Nesse ritmo de clonagem, iria demorar décadas para sobrar uma única vaga.
O engraçado era os Fernandos chegando em casa. Sim, todos tinham o mesmo prenome, só que um era o Fernando I, o outro Fernando II e aí por diante. Todos chegavam e cumprimentavam a única esposa, Fernanda, que não tinha clone. Ela tinha um harém e nenhum deles reclamava, pois eram todos iguaizinhos, tinham o mesmo nome, as mesmas caras, as mesmas “qualidades” e também vontades, e um ciumezinho não iria cair bem para eles. Então, todos permitiam-se conviver com uma única esposa, a sortuda, ou azarada, da Fernanda, que tinha que ficar com 30 homens, até aí acho que ela gostaria, mas com defeitos e manias iguaizinhas, o que devia ser insuportável em um certo estágio de convivência.
De repente, o doutor Fernando acorda. Era tudo um sonho. Lá estava a esposa dele, bonitinha, dormindo ao seu lado. Eram 5 da manhã e ele se levanta, vai escovar os dentes, faz alguma coisa para o café da manhã e sai para o trabalho. Nesse dia ele chega ao fórum faz as audiências e vai falar com o seu chefe.
_ Carlos, eu tive uma idéia.
_ Hum, elas sempre são bem-vindas, amigo Fernando, diga.
_ Você já pensou se nos clonassem, se virássemos vários, como o serviço fruiria melhor?
_ Não estou entendendo...
_ Poderíamos ser clonados. Imaginou a economia para o Estado?
Uma semana depois, o presidente da República aprova uma lei, concedendo um abono e premiação para o servidor que fizesse clonagem avançada, ou seja, que implicasse no surgimento não de um feto, mas de uma pessoa, mesmo, na idade do clonado.
Houve fila de servidores para fazer clonagem. Os concursos acabaram, ao menos temporariamente. Ninguém precisou, mais, sair correndo. As mulheres e os maridos ficaram contentes. Estava instalada a poligamia de fato.
O único porém era que ninguém mais se conhecia ou interagia. O doutor Fernando, o legítimo, chegava na sala de audiências e não sabia se a escrevente era legítima ou um clone. Por isso, somente se sentava e dava um breve sorriso que servia de bom dia. A juíza, o doutor Fernando também não tinha certeza se era a original e permanecia quieto. E assim acontecia com todos os servidores, de todas as classes e carreiras. Todo mundo se via e, com medo, não mantinha diálogos mais profundos que um bom dia, boa tarde ou até logo.
Os clones também ocupavam cargos eletivos. O prefeito era um clone do governador, que seria clone do presidente, que poderia ser clone do ministro e também de membro do Supremo Tribunal Federal? Quanta loucura. Imaginou ver um só rosto que ocuparia vários cargos eletivos? Não. É melhor nem pensar. Teríamos quase que uma ditadura, a ditadura dos clones.
E pensar que tudo teria partido de uma piadinha inocente e na vontade de um idealista de melhorar o serviço público. Olha o que virou.
Vou tratar da clonagem no mundo público, mas não irei falar de tentativa de burla a concurso público, não. Hummm! Pensando bem, até que se encaixaria nessa inconstitucionalidade, sabia?
A clonagem de servidores públicos parece que pode virar realidade. Você não acredita? Pergunte a qualquer funcionário público se ele não está trabalhando mais do que trabalhava. Sim, está. Isso você mesmo pode constatar. Ah, não vale dizer que ele não trabalhava nada, não, que só botava o paletó na cadeira e saia o dia inteiro. Isso até podia ser verdade para uma classe ou outra dentro do universo do funcionalismo público, mas nunca foi a regra. Vá aos hospitais públicos para ver como os médicos, enfermeiros e atendentes trabalham. Vá às delegacias para ver o quanto há de serviço para os policiais. Saia na rua e veja se os policiais militares não têm o que fazer. Vá a um fórum e veja o tanto de audiência e a quantidade de gente que está lá todo santo dia, faça chuva ou faça sol. Serviço pra essa gente intitulada funcionário público não falta.
E é justamente no fórum que a nossa história irá ter vez.
A história é parcialmente real e relativamente fruto de um pesadelo, e só teve nome do personagem e local alterados para que não houvesse identificação, está bem? Estamos tratando de um certo tipo de “sigilo da fonte”.
Fernando é um defensor concursado, daqueles que ainda acreditam em causa pública, mesmo nos tempos do neoliberalismo, do centrismo político e do quase desaparecimento do idealismo. Pode ser considerado um herói dos tempos hodiernos.
Ah, que bonita a palavra “hodierna”. Fala a verdade, assim, até parece que o está redigindo uma petição a um juiz. Hodierno nada mais significa que atual. Simples, não?
Lá estava ele naquele fórum imenso, com dezenas e dezenas de salas de audiência, muitos juízes, muitos processos, muitas audiências e ele lá, sozinho, para fazer as defesas. Que sufoco!
Ele chegava cedo e alegre, como sempre, naquele fórum bonito e majestoso, mas logo mudava de humor e quedava-se suado. Sim, quedar vem de queda. Ele, literalmente caia de cansaço. Afinal, descer e subir escadas correndo, várias e repetidas vezes para fazer audiências é coisa mais para atleta que para causídico. Ah, outro termo que faço questão de traduzir. Causídico é aquele que defende causas, ou seja, advogado.
Isso está parecendo mais um dicionário de homônimos que uma crônica, para ser sincero, mas vamos continuar a história com bases científicas. Será? Está mais para bases reais, fáticas.
Mesmo suado, com a camisa encharcada, a gravata invertida, com a língua de fora e descabelado, sem parecer nem de longe um lorde inglês, Fernando, o doutor, conseguia fazer o seu serviço.
Num desses dias, uma juíza, brincando, lhe disse: “Doutor, porque o senhor não se multiplica? Aí ficaria mais fácil para o Estado”. E essa frase, bem humorada, não saia de sua cabeça, até que uma noite...
O doutor Fernando chega ao fórum, aliás, doutores Fernandos. Eram 30, todos idênticos, como se fossem gêmeos, com os mesmos trejeitos, a mesma voz, o mesmo jeito de andar e o mesmo conhecimento jurídico. Cada um vai para uma Vara, local em que se realizam as audiências, e todos voltam secos, com a camisa em ordem, gravata certa, com a língua dentro da boca, que permanecia fechada, cabelinho estilo mauricinho e parecendo até lordes ingleses.
No início do mês vinha o contra-cheque com o adicional de clonagem. Cada servidor público ganharia um adicional de 30% por clonagem que ele mesmo realizasse. E ele não teve dúvidas e fez logo 30, o que daria um total de 900%. E não venha com a história de que a clonagem resultaria em um bebê. Não, estranhamente, esse tipo de clonagem, bem futurista, já permitia surgir um sujeito da mesma idade e tamanho do clonado.
E você pensa que o administrador reclamava? Não. Ele até gostava. Ao invés de pagar 30 defensores, ele pagava um, que seria bem remunerado e evitava até a realização de concurso público. E esse funcionário não precisava reclamar dos serviços, pois os 30 dariam conta e não seria necessária a realização de concurso público. Coitados daqueles que estavam fora e queriam prestar provas. Nesse ritmo de clonagem, iria demorar décadas para sobrar uma única vaga.
O engraçado era os Fernandos chegando em casa. Sim, todos tinham o mesmo prenome, só que um era o Fernando I, o outro Fernando II e aí por diante. Todos chegavam e cumprimentavam a única esposa, Fernanda, que não tinha clone. Ela tinha um harém e nenhum deles reclamava, pois eram todos iguaizinhos, tinham o mesmo nome, as mesmas caras, as mesmas “qualidades” e também vontades, e um ciumezinho não iria cair bem para eles. Então, todos permitiam-se conviver com uma única esposa, a sortuda, ou azarada, da Fernanda, que tinha que ficar com 30 homens, até aí acho que ela gostaria, mas com defeitos e manias iguaizinhas, o que devia ser insuportável em um certo estágio de convivência.
De repente, o doutor Fernando acorda. Era tudo um sonho. Lá estava a esposa dele, bonitinha, dormindo ao seu lado. Eram 5 da manhã e ele se levanta, vai escovar os dentes, faz alguma coisa para o café da manhã e sai para o trabalho. Nesse dia ele chega ao fórum faz as audiências e vai falar com o seu chefe.
_ Carlos, eu tive uma idéia.
_ Hum, elas sempre são bem-vindas, amigo Fernando, diga.
_ Você já pensou se nos clonassem, se virássemos vários, como o serviço fruiria melhor?
_ Não estou entendendo...
_ Poderíamos ser clonados. Imaginou a economia para o Estado?
Uma semana depois, o presidente da República aprova uma lei, concedendo um abono e premiação para o servidor que fizesse clonagem avançada, ou seja, que implicasse no surgimento não de um feto, mas de uma pessoa, mesmo, na idade do clonado.
Houve fila de servidores para fazer clonagem. Os concursos acabaram, ao menos temporariamente. Ninguém precisou, mais, sair correndo. As mulheres e os maridos ficaram contentes. Estava instalada a poligamia de fato.
O único porém era que ninguém mais se conhecia ou interagia. O doutor Fernando, o legítimo, chegava na sala de audiências e não sabia se a escrevente era legítima ou um clone. Por isso, somente se sentava e dava um breve sorriso que servia de bom dia. A juíza, o doutor Fernando também não tinha certeza se era a original e permanecia quieto. E assim acontecia com todos os servidores, de todas as classes e carreiras. Todo mundo se via e, com medo, não mantinha diálogos mais profundos que um bom dia, boa tarde ou até logo.
Os clones também ocupavam cargos eletivos. O prefeito era um clone do governador, que seria clone do presidente, que poderia ser clone do ministro e também de membro do Supremo Tribunal Federal? Quanta loucura. Imaginou ver um só rosto que ocuparia vários cargos eletivos? Não. É melhor nem pensar. Teríamos quase que uma ditadura, a ditadura dos clones.
E pensar que tudo teria partido de uma piadinha inocente e na vontade de um idealista de melhorar o serviço público. Olha o que virou.