por CYRO SAADEH*
Muito se tem discutido a respeito dos crimes violentos praticados pelos serviçais da ditadura que governou este país de 1964 a 1985.
A ditadura golpeou um governo democrático, calou a população, torturou desafetos, assassinou muitos e, através de uma invenção legal muito mal feita, pretendeu proteger os serviçais que praticaram as mais diversas modalidades de violência.
Diversas autoridades e organizações já se manifestaram a favor da responsabilização em casos de tortura e homicídio, como a Ordem dos Advogados do Brasil, o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi. Outras autoridades preferem o silêncio, como se fosse medida apaziguadora, como o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes.
Alguns dizem que a Lei de Anistia de 1979, Lei nº 6.683/1979, perdoou explicitamente as práticas criminosas e que nenhum delito, por mais bárbaro que seja, poderia ser apurado. Mais à frente veremos que isso não é verdade. A Lei de Anistia fez ressalvas a algumas práticas criminosas, não sendo ampla geral e irrestrita como se pensa.
Ontem, por sinal, foi publicado um interessante artigo do jurista Fábio Konder Comparato na Folha de São Paulo, onde são tecidas sérias críticas à falta de memória do povo, ao desprezo pelo genocídio praticado contra etnias indígenas, ao descaso com a escravatura de africanos e afrodescendentes e aos horrores praticados pelos golpistas da ditadura de 1964. O autor argumenta que a interpretação de que a Lei de Anistia absolveu todas as práticas criminosas é “juridicamente inepta, moralmente escandalosa e politicamente subversiva”. O professor de direito assevera que tratados internacionais vedam a anistia nestes casos e que os crimes comuns não foram atingidos pela Lei. Exclama que nenhum agente do Estado, remunerado com o dinheiro do povo, pode gozar de imunidade penal contra a soberania popular. Por fim, lembra que o Supremo Tribunal Federal deve manifestar-se na ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil sobre a interpretação que deve ser dada à Lei de Anistia.
Antes de qualquer afirmação por parte deste colunista, há que se observar que há uma legislação interna e outra internacional que regem a questão. Então, vamos dividir o tema em tópicos.
DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Cabe observar que há vários tratados que definem o que pode ser entendido como crime contra a humanidade, como o Estatuto do Tribunal da ONU de Nuremberg, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e outros.
É evidente que o aspecto temporal é importante para se caracterizar determinado ato como crime contra a humanidade ou não.
Alguns dos atos praticados entre 1964 e 1979 poderiam ser considerados crimes contra a humanidade se houvesse previsão legal (interna ou externa) já naquele período. E havia disposição expressa. Vigia naquele momento o Estatuto de Nuremberg que previa que crimes contra a humanidade eram “atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições por motivos políticos”.
Hoje, com o advento do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, alargou-se a compreensão do que pode ser considerado crime contra a humanidade.
DA IMPRESCRITIBILIDADE DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade dispõe sobre a imprescritibilidade do que denomina de crimes de guerra, dispostos no item 1 do artigo 1º, e também do que chama de crimes contra a humanidade, elencados no art. 1º, item 2.
Além de outros, são considerados crimes contra a humanidade os crimes cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 8 de agosto de 1945, e confirmados pelas resoluções nº 3 (1) e 95 (1) da Assembléia Geral das Nações Unidas.
Assim, são considerados crimes imprescritíveis, por estarem previstos no Estatuto do Tribunal de Nuremberg, os atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, e as perseguições por motivos políticos”.
A perseguição por motivo político é um crime contra a humanidade, assim como qualquer ato desumano, como tortura ou assassinato, praticado contra parte da população civil. É o texto expresso do ato normativo.
Portanto, foram diversos os atos praticados por membros da Ditadura brasileira que podem ser caracterizados como crimes contra a humanidade: as meras perseguições políticas e as perseguições políticas que redundaram em torturas ou em homicídios, tentados ou consumados, exemplificativamente.
As perseguições políticas, como cassações, podem, em tese, ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei 4.898/1965) e de constrangimento ilegal (art. 146 do Cód. Penal). São imprescritíveis, portanto.
Ainda quanto às perseguições políticas, a reunião de agentes, públicos ou não, para a prática de tortura pode tipificar a formação de quadrilha ou bando (art. 288 do CP). E, se além da reunião para a prática de tortura houver violência sexual, poderá ainda implicar na responsabilização por estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214). Todos estes atos são considerados imprescritíveis, pois têm como fundamento a perseguição por motivos políticos.
A destruição, subtração e ocultação de cadáveres, decorrentes das perseguições políticas, também são previstas como crime no art. 211 do Código Penal e são imprescritíveis, portanto.
O ingresso na residência sem autorização legal, em razão de perseguição política, também é enquadrado na lei penal, mais especificamente no art. 150 do Cód. Penal, e é imprescritível, desde que haja o motivador de perseguição política, ressalte-se.
Porém, há que se observar o princípio da irretroatividade da lei penal (art. 1º do Código Penal e art. 5º, XL, da Constituição Federal). Assim, não há como punir o ato de tortura antes de 1997, quando entrou em vigor a Lei 9.455/1997, mas é possível responsabilizar os agentes por crimes menos graves em que a conduta é prevista pela norma penal (tipo penal), como maus tratos (art. 136 do CP), omissão de socorro (art. 135 do CP) e lesão corporal (art. 129 do CP). Se o ato de tortura resultar em aborto, o responsável pelo ato praticado na ditadura responderá por aborto provocado (art. 125). Todos esses crimes se tornam imprescritíveis, desde que a prática se dê por perseguição política, evidentemente.
A morte dolosa ou culposa de um perseguido político também é imprescritível, por força do mesmo tratado internacional, devendo o agente responder por homicídio (art. 121).
Esses são meros exemplos dos inúmeros crimes praticados pela ditadura contra os perseguidos políticos. Todos os crimes previstos em lei e praticados à época dos atos de perseguição tornaram-se imprescritíveis.
E perseguição política vai muito além de crime político, apresentando-se das mais diversas formas, todas consideradas imprescritíveis. A humanidade, representada pelo conjunto de nações, repudia qualquer ato de intolerância política, dentre outras, prevendo a imprescritibilidade para qualquer conduta deste tipo.
Além de outros, são considerados crimes contra a humanidade os crimes cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 8 de agosto de 1945, e confirmados pelas resoluções nº 3 (1) e 95 (1) da Assembléia Geral das Nações Unidas.
Assim, são considerados crimes imprescritíveis, por estarem previstos no Estatuto do Tribunal de Nuremberg, os atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, e as perseguições por motivos políticos”.
A perseguição por motivo político é um crime contra a humanidade, assim como qualquer ato desumano, como tortura ou assassinato, praticado contra parte da população civil. É o texto expresso do ato normativo.
Portanto, foram diversos os atos praticados por membros da Ditadura brasileira que podem ser caracterizados como crimes contra a humanidade: as meras perseguições políticas e as perseguições políticas que redundaram em torturas ou em homicídios, tentados ou consumados, exemplificativamente.
As perseguições políticas, como cassações, podem, em tese, ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei 4.898/1965) e de constrangimento ilegal (art. 146 do Cód. Penal). São imprescritíveis, portanto.
Ainda quanto às perseguições políticas, a reunião de agentes, públicos ou não, para a prática de tortura pode tipificar a formação de quadrilha ou bando (art. 288 do CP). E, se além da reunião para a prática de tortura houver violência sexual, poderá ainda implicar na responsabilização por estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214). Todos estes atos são considerados imprescritíveis, pois têm como fundamento a perseguição por motivos políticos.
A destruição, subtração e ocultação de cadáveres, decorrentes das perseguições políticas, também são previstas como crime no art. 211 do Código Penal e são imprescritíveis, portanto.
O ingresso na residência sem autorização legal, em razão de perseguição política, também é enquadrado na lei penal, mais especificamente no art. 150 do Cód. Penal, e é imprescritível, desde que haja o motivador de perseguição política, ressalte-se.
Porém, há que se observar o princípio da irretroatividade da lei penal (art. 1º do Código Penal e art. 5º, XL, da Constituição Federal). Assim, não há como punir o ato de tortura antes de 1997, quando entrou em vigor a Lei 9.455/1997, mas é possível responsabilizar os agentes por crimes menos graves em que a conduta é prevista pela norma penal (tipo penal), como maus tratos (art. 136 do CP), omissão de socorro (art. 135 do CP) e lesão corporal (art. 129 do CP). Se o ato de tortura resultar em aborto, o responsável pelo ato praticado na ditadura responderá por aborto provocado (art. 125). Todos esses crimes se tornam imprescritíveis, desde que a prática se dê por perseguição política, evidentemente.
A morte dolosa ou culposa de um perseguido político também é imprescritível, por força do mesmo tratado internacional, devendo o agente responder por homicídio (art. 121).
Esses são meros exemplos dos inúmeros crimes praticados pela ditadura contra os perseguidos políticos. Todos os crimes previstos em lei e praticados à época dos atos de perseguição tornaram-se imprescritíveis.
E perseguição política vai muito além de crime político, apresentando-se das mais diversas formas, todas consideradas imprescritíveis. A humanidade, representada pelo conjunto de nações, repudia qualquer ato de intolerância política, dentre outras, prevendo a imprescritibilidade para qualquer conduta deste tipo.
DA ANISTIA
Questão premente que surge é a abrangência da Lei nº 6.683/1979, norma interna, conhecida como a Lei da Anistia.
A referida lei concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos e conexos no período de 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, excluindo expressamente as condenações por crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
Verifica-se, portanto, que a abrangência da Lei de Anistia não é ampla, alcançando apenas aquilo que denomina de crimes políticos e conexos.
Mas alcançaria ela os homicídios e as torturas praticados por agentes públicos? E, mais, seria ela compatível com o ordenamento jurídico interno e externo?
Há que se observar que a Lei de Anistia data de 1979 e é posterior à Convenção da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, de 1968, e à Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 1975. Esta última prevê expressamente em seu artigo 3º que nenhum Estado poderá tolerar a tortura ou tratos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” e que “não poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais tais como estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificativa da tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”.
Pela citada Declaração, nenhuma lei poderia proibir a punição de crimes como a tortura e assassinatos praticados durante o estado de exceção. Lei alguma poderia justificar tais atos e anistiá-los, como dispõe de forma cabal o art. 3º da Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Numa integração legislativa, há que se entender que, ao menos para as práticas de tortura, com ou sem morte, e de assassinatos, não pode prevalecer a Lei de Anistia. Esse ponto parece ser de fácil interpretação.
A questão surge se a lei de anistia é válida para os outros crimes, como de abuso de autoridade, violação de residência e outros.
A legislação internacional dispõe que qualquer crime praticado em razão de perseguição política é considerado crime contra a humanidade e imprescritível (Convenção sobre a Imprescritibilidade, de 1968, e Estatuto de Nuremberg, que define o que pode ser considerado como crime contra a humanidade) e é anterior à entrada em vigor da Lei de Anistia, de 1979.
Seguindo a mesma forma de integração legislativa, há que se compreender que a Lei de Anistia não tem qualquer validade, já que os crimes que alcança são todos relativos a crimes políticos, englobados naquilo que se considera perseguição política. E perseguição política é crime contra a humanidade, note-se bem.
Desta forma, todos os crimes praticados em razão de perseguição política (conexos ou não aos ditos crimes políticos), não sofrem os efeitos de prescrição e nem podem ser alcançados por lei que preveja a impunidade.
Tratando-se de prática de crime contra a humanidade, não há que se questionar o nível da gravidade psíquica ou física. É um crime que a comunidade internacional entende ser extremamente grave, a ponto de prever a sua imprescritibilidade, ou seja, a permissão de punição a qualquer tempo, sem qualquer restrição ou delimitação temporal.
Assim, a Lei nº 6.683/1979 não pode produzir qualquer efeito no tocante à anistia dos crimes que menciona, já que não se adéqua às disposições gerais e internacionais a respeito dos crimes contra a humanidade. É uma lei que afronta os valores e os preceitos que o Brasil se comprometeu a respeitar.
No país de faz-de-conta tudo é possível, até esquecer as barbaridades praticadas décadas ou séculos atrás, como bem anota Fábio Konder Comparato em seu texto “Crimes sem Castigo” (FSP – 19/09/08). No entanto, no país que sonhamos e desejamos aos nossos filhos e netos, o respeito ao ser humano, à democracia e ao conjunto de leis vigentes deve ser exemplo permanente e incessante tanto na teoria como na prática de todos os poderes constituídos e de seus agentes públicos.
Barbáries nunca mais. Sim aos processos e punições previstos em lei.
A referida lei concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos e conexos no período de 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, excluindo expressamente as condenações por crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
Verifica-se, portanto, que a abrangência da Lei de Anistia não é ampla, alcançando apenas aquilo que denomina de crimes políticos e conexos.
Mas alcançaria ela os homicídios e as torturas praticados por agentes públicos? E, mais, seria ela compatível com o ordenamento jurídico interno e externo?
Há que se observar que a Lei de Anistia data de 1979 e é posterior à Convenção da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, de 1968, e à Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 1975. Esta última prevê expressamente em seu artigo 3º que nenhum Estado poderá tolerar a tortura ou tratos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” e que “não poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais tais como estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificativa da tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”.
Pela citada Declaração, nenhuma lei poderia proibir a punição de crimes como a tortura e assassinatos praticados durante o estado de exceção. Lei alguma poderia justificar tais atos e anistiá-los, como dispõe de forma cabal o art. 3º da Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Numa integração legislativa, há que se entender que, ao menos para as práticas de tortura, com ou sem morte, e de assassinatos, não pode prevalecer a Lei de Anistia. Esse ponto parece ser de fácil interpretação.
A questão surge se a lei de anistia é válida para os outros crimes, como de abuso de autoridade, violação de residência e outros.
A legislação internacional dispõe que qualquer crime praticado em razão de perseguição política é considerado crime contra a humanidade e imprescritível (Convenção sobre a Imprescritibilidade, de 1968, e Estatuto de Nuremberg, que define o que pode ser considerado como crime contra a humanidade) e é anterior à entrada em vigor da Lei de Anistia, de 1979.
Seguindo a mesma forma de integração legislativa, há que se compreender que a Lei de Anistia não tem qualquer validade, já que os crimes que alcança são todos relativos a crimes políticos, englobados naquilo que se considera perseguição política. E perseguição política é crime contra a humanidade, note-se bem.
Desta forma, todos os crimes praticados em razão de perseguição política (conexos ou não aos ditos crimes políticos), não sofrem os efeitos de prescrição e nem podem ser alcançados por lei que preveja a impunidade.
Tratando-se de prática de crime contra a humanidade, não há que se questionar o nível da gravidade psíquica ou física. É um crime que a comunidade internacional entende ser extremamente grave, a ponto de prever a sua imprescritibilidade, ou seja, a permissão de punição a qualquer tempo, sem qualquer restrição ou delimitação temporal.
Assim, a Lei nº 6.683/1979 não pode produzir qualquer efeito no tocante à anistia dos crimes que menciona, já que não se adéqua às disposições gerais e internacionais a respeito dos crimes contra a humanidade. É uma lei que afronta os valores e os preceitos que o Brasil se comprometeu a respeitar.
No país de faz-de-conta tudo é possível, até esquecer as barbaridades praticadas décadas ou séculos atrás, como bem anota Fábio Konder Comparato em seu texto “Crimes sem Castigo” (FSP – 19/09/08). No entanto, no país que sonhamos e desejamos aos nossos filhos e netos, o respeito ao ser humano, à democracia e ao conjunto de leis vigentes deve ser exemplo permanente e incessante tanto na teoria como na prática de todos os poderes constituídos e de seus agentes públicos.
Barbáries nunca mais. Sim aos processos e punições previstos em lei.
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* jornalista e Procurador do Estado de São Paulo