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CRÔNICAS - NÃO FALO A LÍNGUA DO IMPERIALISMO VIGENTE. NÃO FALO E AINDA PERTURBO

por Cyro Saadeh

Tudo aconteceu numa viagem que fiz para a Argentina com um amigo. Tentando economizar, optávamos sempre por “hostels” que, para quem não sabe, equivalem aos albergues, com quartos e banheiros coletivos. Lá dormem homens e mulheres, todos misturados (não necessariamente na mesma cama, veja bem. Aliás, esses tipos de hospedagens têm regras implícitas muito sérias, como a de não ficar nu e nem transar no quarto).


Ao chegarmos em Ushuaia começou a surpresa. O lugar era lindo, mas muito gelado. Foi só descer do ônibus com as malas pesadas para percebermos que não daria certo procurar um lugar para ficar, carregados de malas, e, ao mesmo tempo, protegermo-nos do vento gélido. Optamos por dividir atribuições. Enquanto eu procurava passeios e hotéis, o meu amigo ficava com as “pequeninas e discretas” mochilas, parado em um lugar. Bem, o ruim é que o figura permaneceu estático. Quando retornei, ele parecia uma estátua de tão duro. Mas vamos à minha procura, que faz parte da história.


Lá fui eu procurar os lugares. O início não podia ter sido melhor.


Antes de sair em busca de um canto, optei por procurar passeios para o dia seguinte, já que havia uma loja bem ao nosso lado. Para a minha felicidade, quem me atendeu foi uma loira baixa, de olhos verdes, que, com uma voz rouca, ficava mais que perfeita. É, mas apenas ficar olhando e admirando não iria levar a nada, quando então, “minutos após”, resolvi perguntar sobre os passeios e ela disse naquele castelhano fantástico que só fazia passeios para a “pinguineira”. Para quem não sabe, esse é o local onde ficam os pingüins.


Eu não agüentava mais ver pingüins, aqueles seres nanicos e barrigudos andando torto de um lado para o outro. Não havia passeio mais chato para mim. Aí resolvi mudar a pergunta, para descobrir se ela conhecia um lugar barato para ficar. Sim, ela conhecia: “você pode ficar em casa”. Sim, ela falou exatamente isso. Eu também não acreditei e já olhei para ela e em seguida olhei para cima (querendo agradecer por aquela recepção para lá de maravilhosa e inesperada). Mas o meu ar de bobo foi interrompido com um telefonema que ela fez para o pai, perguntando se havia lugar. O carrasco, sim, não pensou no bem estar desse brasileiro que estava sentindo falta do calor humano, respondeu que não tinha lugar. Ela olhou para mim, com os olhos baixos e disse: “desculpe, mas não tem mais vaga lá em casa”. Ah, se você a conhecesse, também aceitaria dormir até no chão do banheiro, mas como falaria isso?


O jeito foi andar de um lugar para o outro, em busca de um alojamento. Mas estava difícil encontrar. Subi inúmeros quarteirões e desci outros tantos e todos os “hostels” estavam cheios. Depois me falaram que “verão” em Ushuaia é assim, mesmo! Bem, o lugar pode ser cheio, mas não sei aonde tinha verão por lá…


Nas andanças, vi um hostel bem legal e transado, mas só tinha vaga para o dia seguinte. O duro é que havia simpatizado com o lugar. Lá dentro era bem quente, tinha internet, espaço comunitário bem grande, onde podíamos jogar uma conversa fora, lavanderia e coisas do tipo.


Bem, o duro foi sair de lá sabendo que não ficaria naquele canto quentinho e ainda teria que enfrentar a rua gelada!


Resultado, tive que andar rápido, o máximo que pude, até encontrar o “recanto” dos mochileiros. Sim, pelo nome já deu para ver como era o lugar. Mas bota ruim nisso. Mas era o único que tinha vaga. Tinha? Num primeiro instante o dono falou que tinha e cinco minutos depois falou que não tinha mais. Acho que a minha cara de desolação serviu para ele ter a idéia de me colocar em um quarto e o meu amigoem outro. Até aí tudo bem. Não iria sentir saudades dele, mesmo. Aliás, viajar com amigo tem esse lado negativo. Tem horas que a gente olha do lado e fica pensando porque foi escolher viajar com um cara com tanta mulher por aí!
Mas, voltando à história, após avisá-lo e irmos até lá, eu e ele optamos por tirar par ou ímpar para ver quem ia ficar aonde. Sortudo que sou, cai em um quarto com um argentino e dois casais de alemães. Bem, isso não foi o pior.


Já o meu amigo ficou sozinho com três chinesas. Tudo bem que não eram muito bonitas, mas você já se imaginou em um quarto com três mulheres? Bem, diz ele que nada rolou, mas a minha mente fértil já viu coisas. Três? O cara era realmente um sortudo.


Mas o “hostel” era péssimo. Ao tomar banho antes de dormir, vi que eu tinha literalmente que me encaixar no box para conseguir me lavar. Nunca vi um lugar assim. Realmente o proprietário quis economizar espaço e água, convidando tacitamente as pessoas para não terem muita higiene naquele gelo. Eu só relaxei porque imaginei que no dia seguinte eu podia ficar lá com as chinesas…


Voltando à realidade, entrei no quarto e havia um casal de alemães deitados. Eles me cumprimentaram e eu fui tentar dormir, sim, na parte de cima do beliche. Subi, deitei e pensei que ia conseguir dormir, quando senti um forte vento frio bem na minha orelha. Olhei para o lado e tinha uma janela entreaberta, pela qual o vento entrava diretamente à minha orelha.
Pôxa, como alguma alma poderia pensar em deixar entrar no quarto aquele vento congelante? É, mas pensaram e até colocaram uma toalha na mesma janela, para secar e evitar que esse pobre brasileiro a fechasse. O jeito foi tentar dormir, coisa que não consegui e, ainda, como prêmio, peguei uma forte gripe. Enquanto isso, o meu amigo estava interagindo com as três chinesas, imaginava. Mundo injusto. Ele com uma globalização humana e eu sofrendo os efeitos da globalização de choque, de força.


No dia seguinte, o convenci a mudar de “hostel”. Ele aceitou. Disse que as chinesas eram insuportavelmente chatas e que ficaram cantando a noite inteira. É, pensei, não perdi tanta coisa. Acordar com música chinesa não deve lá ser muito agradável, pensei.


Já alojados no novo e “luxuoso” hostel, saímos apenas para pedir informações e jantar. Quando lá estava eu dormindo naquele canto quentinho, um sujeito me cutuca e fala coisas que não compreendi. Na dúvida, fiquei deitado e só fiquei assistindo o sujeito resmungar. Imaginei que eu tivesse roncado e o incomodado. Imaginei que seria isso. O duro foi ser acordado outra vez pelo sujeito. Sim, duas. Acho que sou calmo demais. Dessa última vez ele veio gritando em inglês algo que não entendi. Me senti o próprio país colonizado sendo humilhado pelo país imperial. Aquele britânico, que sequer agradecia em castelhano, iria se ver comigo. Daria uma de Che Guevara dos mochileiros, propiciando a libertação dos oprimidos roncadores.


Descobri que o Sr. arrogância era britânico numa conversa que teve com o recepcionista do “hostel” no dia seguinte. O sujeito não falava nada em espanhol ou castelhano. Era um imperialista, realmente. O mínimo que a boa educação pede é que ao menos o cumprimento e a despedida falemos na língua do país em que nos encontramos. Mas o imperialista, pensando que ainda estava no século XIX, era por demais pedante.


Contei a história para o meu amigo e ele ficou inconformado. Primeiro, disse que não ouviu o meu ronco uma única vez. Depois, disse que se estivesse no meu lugar já teria dado um soco no sujeito, pois que história é essa de acordar um desconhecido no meio da noite?


O meu amigo tinha razão. Eu também achei o sujeito folgado, além de visualizá-lo como um imperialista arrogante.


Como tínhamos que aproveitar o dia, eu e o meu amigo fomos passear, conhecemos lugares legais e, enquanto ele ficou na internet, eu fui dormir cedo, já que estava muito gripado.
Quando entrei no quarto, um senhor de uns 60 anos, americano, estava pelado, se vestindo. O cumprimentei e o estranho nem respondeu.


Bem, o que eu queria era dormir. Não iria falar para o sujeito não ficar nu porque uma mulher (namorada do imperialista) poderia chegar a qualquer instante. Nem saberia falar direito isso em inglês e ainda poderia passar por pedante. Optei pelo silêncio.


Bem, não deu cinco minutos que havia deitado quando fui acordado pelo Sr. arrogânciaem pessoa. Pulei da cama e, utilizando o meu bom portunhol, perguntei: “És loco? És loco?”. Assustado, o sujeito respondeu em inglês e continuei com o meu espanhol. “Llamar la policia. Ele respondeu, em inglês, que não havia entendido, e eu finalizei a relação diplomática dizendo “policia”. Ele olhou para mim e foi deitar, visivelmente com medo.


Inconformado, fiquei o resto da noite sem dormir e, passada uma meia hora, percebi que tanto o americano ao lado quanto o meu amigo também roncavam, e como! Não sei se sentiram-se mais à vontade para roncar ou o que foi, mas até eu fiquei incomodado. Bem, mas foi um senhor troco dos oprimidos ao petulante imperialista. Agora, o ronco estava definitivamente liberado. A cultura imperialista não mais abafaria o ronco dos marginalizados. A revolução, de certo, não pararia mais aí. Ouvir-se-ia o ronco em outros quartos, em outros “hostels” e, quem sabe, no mundo inteiro!


O ronco superou a arrogância. O hábito milenar havia sido preservado sem ter sido necessário tirar uma gota de sangue, sequer.


Fiquei feliz porque em nenhum instante falei a língua dos imperialistas e ainda os incomodei com a minha forte e sonora manifestação, que a partir daquele dia nunca mais seria abafada, a não ser por uma negociação bilateral com uma namorada.